As políticas públicas para primeira infância na Boa Vista
Há uma década, programa Família que Acolhe promove medidas voltadas a crianças entre 0 e 6 anos na capital de Roraima. Imigrantes venezuelanas são um quarto das beneficiadas ativas
Completando uma década de existência, o programa Família que Acolhe é uma das referências brasileiras em políticas públicas voltadas para primeira infância, período que vai dos 0 aos 6 anos.
O projeto foi criado pela prefeitura de Boa Vista, capital de Roraima, e atende mães e crianças, do período da gestação até os primeiros anos do desenvolvimento infantil.
Por ser uma cidade com alta incidência de imigrantes, o projeto também acolhe venezuelanas que passaram a residir no Brasil. Até setembro de 2023, segundo a Secretaria de Projetos Especiais municipal, mais de 30,5 mil gestações já haviam sido beneficiadas desde o início do programa, sendo que mais de 8.000 mães estão com o cadastro ativo.
Neste texto, o Nexo apresenta o Família que Acolhe e outros projetos que colocam a capital roraimense como referência em políticas públicas para a primeira infância. Traz também a situação da população venezuelana local dentro do programa.
Programa Família que Acolhe
A partir da parentalidade positiva, o programa trabalha um conjunto de estratégias, práticas e atividades que promovem o desenvolvimento responsável da criança.
O Família que Acolhe é intersetorial, ou seja, envolve várias secretarias municipais, como Saúde, Educação, Comunicação, Finanças, Obras e Infraestrutura. As atividades são desenvolvidas na sede do projeto, localizado no bairro Nova Canaã, e, desde 2021, também nos Cras (Centro de Referência e Assistência Social) municipais.
Andreia Neres, secretária de Projetos Especiais de Boa Vista, explica que o ideal é que o início do acompanhamento aconteça até as 12 semanas de gestação. “Há exceções, mas o que a gente quer é que a mulher, assim que saiba que está grávida, nos procure para a gente poder dar suporte, e não esperar quase ter o bebê para nos procurar. Às vezes, muita coisa já aconteceu e que a gente poderia ter ajudado”, disse ao Nexo.
Para se enquadrar no programa, é necessário a inscrição no CadÚnico do governo federal, no sistema de informações do projeto e parecer técnico da necessidade de inserção da família. De acordo com a lei que instaurou o Família que Acolhe, adolescentes, beneficiárias do Bolsa Família e reeducandos do sistema penitenciário são os principais alvos do projeto.
Segundo Neres, o investimento em cuidados e desenvolvimento na primeira infância é uma forma de ter uma sociedade mais equilibrada: “óbvio que não é um investimento de retorno a curto prazo. O retorno maior vai ser a longo prazo”.
Universidade do Bebê
Um dos pilares do Família que Acolhe é a Universidade do Bebê. Voltada para pais e responsáveis, a instituição é uma forma de desenvolver habilidades e capacitá-los a cuidar da vida da criança. Ali, como uma espécie de “escola de pais”, as novas mães e seus familiares são informados por profissionais sobre as melhores maneiras de impulsionar o desenvolvimento psicossocial infantil.
Ao todo, 43 encontros temáticos são desenvolvidos no curso, acompanhando as mães desde a gestação até os dois anos de idade da criança, com aulas específicas para cada momento. As oficinas e rodas de conversa, que acontecem de forma quinzenal na sede do programa ou em visitas domiciliares, abordam temas afetivos – como o papel e a relação parental – além de formas de desenvolver a criatividade infantil – como a confecção de brinquedos ou o teatro infantil.
O incentivo à criação de um ambiente menos tóxico na primeira infância é uma das principais atuações dentro da universidade. “Hoje você tem crianças que têm uma condição socioeconômica boa, mas que estão sofrendo de ansiedade”, explica Neres. “Por quê? Porque está em um ambiente familiar com a ausência dos pais, com brigas, onde não há um diálogo ou um estímulo. E as crianças precisam dessa interação com seus cuidadores, é o básico para o desenvolvimento dela”.
As famílias com maiores frequências na Universidade do Bebê garantem também a entrada nas Casas Mãe, um modelo de creches criado pela prefeitura de Boa Vista para crianças entre dois a quatro anos. Além da garantia de iniciação no ensino básico, Neres afirma que a participação no curso também promove melhorias na educação da criança: “São famílias mais participativas. Durante dois anos, ela aprendeu a dar importância de parar um pouquinho e dar atenção, discutindo sobre a criação do seu filho”.
Imigração venezuelana
O estado de Roraima, principalmente através da cidade fronteiriça de Pacaraima, é a principal porta de entrada da imigração venezuelana para o Brasil. De acordo com dados do Subcomitê Federal Para Recepção, Identificação e Triagem dos Imigrantes, entre janeiro de 2017 e julho de 2023, 946 mil venezuelanos entraram no país, sendo a fronteira roraimense entre os três pontos principais de entrada – ao lado dos aeroportos internacionais de Guarulhos e do Rio de Janeiro.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apesar de ser o menos populoso, o estado foi o que apresentou maior taxa de crescimento anual entre 2010 e 2022, indo de 450.479 para 636.036 habitantes. Em coluna para a rede CNN Brasil, Diego Prandino Alves, assessor do TCU e ex-secretário de planejamento e orçamento de Roraima, afirma que esse crescimento populacional está relacionado à imigração venezuelana.
A alta incidência de venezuelanos no local fez com que o projeto para a primeira infância também passasse a contemplá-los. “Se tem residência no município de Boa Vista e documentação, participa [do programa]”, explica Neres. Dados da OIM (Organização Internacional para as Migrações) de agosto de 2023 mostram, contudo, que 2.793 venezuelanos estão em situação de rua ou fora dos abrigos da Operação Acolhida – projeto do governo federal que garante abrigo e atendimento aos imigrantes – e, portanto, não tem endereço residencial.
Ao Nexo, a Secretaria de Projetos Especiais afirmou que 25% dos cadastros ativos no programa municipal são de mulheres venezuelanas.
4.683
gestações de mulheres venezuelanas foram cadastradas no Família que Acolhe desde 2013
A secretaria explica que, com o aumento do volume de imigrantes na década de 2010, cogitou-se fazer salas exclusivas para as venezuelanas, mas “a gente viu que não era o melhor caminho, porque ia gerar xenofobia”. Neres continua: “elas estão inseridas nas turmas normalmente e trocam com as brasileiras. Isso é bem legal porque elas veem que os desafios que ela tem, ela não está sozinha, tem outras que estão passando pelos mesmos desafios”.